por Frei Antônio Moser
A renúncia do Papa Bento XVI foi inesperada, mas não de todo
imprevisível. Sua personalidade decidida e algumas breves alusões de que já
sentia o peso da idade, tornaram seu gesto bem compreensível. Claro que se
trata de um fato extraordinário, uma vez que a última renúncia de um Papa
ocorreu no longínquo ano de 1415. Com isto estávamos habituados a conjugar a
eleição de um novo Papa com a morte do antecessor.
Diante deste fato inusitado do gesto do Papa Bento XVI, claro que
surgem muitas interpretações e até mesmo muitas especulações. Numa primeira
linha aparecem perguntas sobre os reais motivos que o levaram a este gesto. Ele
diz que a idade avançada já não permitiu que ele exercesse por mais tempo seu
ministério. Outros acrescentam alguma especulação na linha da “pesada carga”
dos escândalos que explodiram durante seu pontificado. E há certamente aqueles
que não descartam pressões de ordem política na alta hierarquia da Igreja.
Claro que há também análises que sugerem crises na igreja e até
preveem rachaduras, numa Igreja que teria dois Papas: o que renunciou e o que o
sucede por eleição. A inspiração deste tipo de leitura provém certamente de
certas situações políticas do mundo de hoje, onde aqui e ali aparecem tensões
há os que pretendem se perpetuar no poder, mesmo já tendo sucessores
legitimamente eleitos. Mas este certamente não será o caso da Igreja neste
momento, sobretudo, em se tratando do Cardeal Ratzinger. Ele irá preferir
passar seus últimos anos no silêncio de um mosteiro sem influenciar, nem ser
influenciado pelo sucessor.
Para além das especulações, parece bem mais importante
interpretarmos o gesto deste Papa em confronto com a atitude do seu antecessor.
A ninguém escapa a originalidade de cada um deles. Duas personalidades, dois
perfis, dois carismas. E, no entanto, uma leitura mais aprofundada talvez nos
propicie outra compreensão, que permitirá o vislumbre de mudanças profundas na
compreensão da missão do ministério dos Papas e na identidade profunda da
própria Igreja.
João Paulo II, com um incomparável carisma de comunicador e ardor
evangélico, parecia não poder ser sucedido, e, no entanto, aos poucos se foi
percebendo que Bento XVI, com sua fala mansa, ia reunindo multidões sempre
maiores de fiéis que sem grandes aplausos, saiam das audiências e celebrações
públicas profundamente tocadas pelas palavras de quem mesmo no exercício de seu
ministério petrino nunca deixou de ser um exímio teólogo. Mesmo sendo Bento XVI
nunca deixou de ser o Cardeal Ratzinger, embora agora com uma missão e uma
pedagogia diferente daquela que exercia durante o pontificado do antecessor.
Prosseguindo no paralelo, não podemos deixar de perceber que João
Paulo II manifestamente não quis largar a cruz que a idade e a doença lhe
impunham de maneira crescente. Pelo contrário, até a última aparição, com
aquele gesto de apoiara as mãos sobre a janela de seu quarto, deixou uma
mensagem inequívoca: não queria ser novamente hospitalizado, pois sua agonia
chegava ao fim e julgava já estar na hora de voltar para a casa do Pai. Missão
cumprida. Ele será para sempre lembrado como o Papa que carregou aos olhos de
todo o mundo a imagem do Cristo crucificado, que bebeu o cálice do sofrimento
até a última gota. Com este gesto profético deixou uma mensagem perene para o
mundo: não é fugindo, mas é abraçando a cruz que se chega à ressurreição.
A renúncia voluntária de Bento XVI parece ir no sentido contrário,
mas isto apenas nas aparências. Também ele carregou uma pesada cruz, não tanto
física, quanto psíquica e espiritual. Não fugiu diante dela. E, no entanto, na
sua compreensão o Papado é um ministério, um serviço a ser cumprindo enquanto tivesse
condições para prosseguir na missão que lhe foi confiada. Talvez nem todos
percebam, mas este também é um gesto profético: perceber os sinais dos tempos e
deixar que outro em condições mais favoráveis ocupe o lugar, que não pertence a
um ser humano, mas ao próprio Filho de Deus. A Igreja só conhece um único Pastor,
que é Jesus Cristo. Os demais são servos do Pastor dos pastores. Os Papas não
são deuses, mas simples mortais, com todos os condicionamentos que este fato
comporta.
Mas o significado profético do gesto de Bento XVI parece apontar
para ao menos duas outras direções. A primeira para o sentido e missão da
própria Igreja. Ela também é humana e profundamente humana. Carrega nas mãos um
tesouro precioso, mas em frágeis vasos de barro. A segunda direção apontada por
Bento XVI pode parecer muito arrojada, mas certamente marcará para sempre a
história da Igreja. Daqui para frente os Papas se sentirão impelidos tanto a
imitar João Paulo II, sem medo de mostrar sua fragilidade, quanto a imitar
Bento XVI: todos têm seu tempo e chega um momento em que, é preciso abrir as
condições para que outro tome o mesmo bastão e prossiga com mais força a
grandiosa missão que não foi confiada a este ou àquele ser humano, mas à
Igreja, sempre guiada por Jesus Cristo.
Enfim: este é certamente um momento histórico que deixará marcas
para todo sempre. As marcas de duas faces de um mesmo rosto: os ministérios
exercidos na Igreja comportam a coragem de não fugir da cruz, mas igualmente a
coragem de ceder o lugar a quem poderá proclamar com maior vigor a mensagem do
Evangelho, que tanto se revela na fraqueza, quanto na força, ambas
manifestações do mesmo mistério da cruz e da Ressurreição. À luz do Evangelho o
maior é sempre aquele que se faz o menor; e se faz o menor tanto o que morre
com a cruz sobre os ombros e aos olhos de todos, quanto aquele que passa a
carregar sua cruz no silêncio de um mosteiro.